Escrevo esse post depois de completar aquela que foi provavelmente a prova mais difícil da minha vida de triatleta: o Campeonato Mundial de Ironman 2014 em Kailua-Kona, no Havaí.

Muita gente provavelmente lê essa frase e pensa “claro, esse negócio de Ironman é coisa de maluco!” Mas, entre todas as maluquices dessa tribo, essa é muito provavelmente a mais temida e, ao mesmo tempo, a mais desejada.

Os 3,8km de natação, 180km de ciclismo e 42,195km da maratona ganham tons dramáticos na Big Island do Havaí.

A largada da natação – início da prova – acontece na pequenina praia de Dig Me Beach, no Píer de Kailua. Quando digo pequenina não é exagero: uma faixa de aproximadamente 15 metros de areia representa a porta de entrada para mais de dois mil atletas de mais de 70 países. Os profissionais largam de 25 a 20 minutos na frente dos amadores (homens e mulheres, respectivamente), mas às 7h o pequeno espaço ao lado do Píer é tomado por um enxame de triatletas em busca de um espaço nas águas havaianas.

Neste ano, uma grande ondulação atingiu as ilhas no início da semana da prova e no sábado, dia 11 de outubro, o oceano ainda dava uma mostra da sua força, fazendo a pequena Dig Me Beach desaparecer e obrigando os atletas a pularem direto na água da pequena escada instalada pela organização da prova no Píer. O percurso de natação consiste em ida e volta ao longo da baía de Kailua, totalizando os 3.860 metros da primeira etapa do Ironman. Logicamente, no Havaí os atletas têm a felicidade de nadar em águas cristalinas, invariavelmente com a presença de muita vida marinha, incluindo peixes, tartarugas e muitos golfinhos.

Ao fim da natação no Píer de Kailua, os triatletas entram na área de transição montada no local onde, muito provavelmente, fica o estacionamento de bicicletas mais valioso do mundo. São 2.200 máquinas com o que existe de mais moderno e tecnológico no mercado de bicicletas no mundo. Considerando que todos os atletas deixam a bicicleta na transição um dia antes da prova, é possível imaginar o nível de segurança da organização do evento.

O percurso de ciclismo começa com um breve zigue-zague por dentro da cidade de Kona pela Kwakini Highway, uma das principais vias da cidade. É possível ver gente de todas as partes do mundo incentivando os atletas com sirenes, bandeiras, vuvuzelas e o que mais a criatividade permitir!

A brincadeira começa pra valer na subida da Palani Road, que leva os atletas e suas bicicletas até a Queen K Highway. Essa estrada é um caso à parte e uma verdadeira lenda para os praticantes de triathlon. O cenário é, ao mesmo tempo, deslumbrante e desolador. A animação da torcida dá lugar à solidão da estrada.

O mar azul ao longo do percurso contrasta com o solo vulcânico, e o calor impiedoso dá o tom das próximas horas. Mas é no retorno do percurso de 180km feito em uma única volta que fica o verdadeiro destaque do ciclismo: a subida de Hawi. Hawi é um pequeno vilarejo ao final da estrada Kawaihae, mas a simples pronúncia desse nome pode causar calafrios em alguns atletas que já enfrentaram a sua fúria. E não se trata de mitologia das ilhas, é a força da natureza mesmo. O local fica situado bem no extremo Noroeste da Big Island, no meio do Oceano Pacífico, sujeito à fúria dos ventos que podem chegar a quase 90km/h em dias mais rigorosos. Ah, e para chegar lá é preciso subir por 30km.

Parece que os deuses das ilhas não estavam de bom humor no dia 11 de outubro, pois, além do calor beirando os 40 graus, os atletas ainda tiveram que enfrentar ventos muito fortes durante todo o percurso de ciclismo. A ponto da organização da prova precisar “chumbar” as barracas no chão para evitar que elas voassem.

O vento que castiga na subida não ajuda na descida. Mesmo alguns dos mais experientes atletas profissionais (incluindo o vencedor da prova e superciclista alemão Sebastian Kienle) sofreram para manter o controle das bicicletas com as rajadas de vento lateral que sopram do alto do vulcão Mauna Kea em direção ao mar.

Depois de retornar a Kona e completar os 180km, os atletas deixam as bicicletas e calçam os tênis para a tarefa mais dura do dia: correr uma maratona debaixo de um calor havaiano.

Os primeiros 16km dessa odisseia acontecem com a Ali’i Drive como pano de fundo. A simpática rua à beira-mar, o público torcendo novamente de perto e a brisa do mar dão um pequeno refresco. Mas depois é hora de subir novamente a Palani e chegar na mesma Queen K para, dessa vez à pé, enfrentar pela última vez todos os obstáculos rumo à tão sonhada linha de chegada. O percurso nunca é totalmente plano, com o constante sobe e desce do terreno vulcânico e a impressão de que o Havaí reserva carinhosamente um sol para cada competidor.

O retorno da maratona é feito no Energy Lab, parque público dedicado ao desenvolvimento de tecnologias para a aplicação de energia sustentável. Não poderia ser mais irônico, uma vez que o que você mais precisa (e geralmente menos tem) a essa altura da maratona de um Ironman é algum tipo de energia…

Chegando de volta à Kona, você desce a Palani pela última vez, já completamente extasiado pela sensação de completar aquele que é conhecido como “o mais duro evento esportivo de um só dia do planeta”. As pessoas parecem saber disso, quase que pressentir, e já começam a te parabenizar com pouco mais de 2km para a chegada.

De volta à Ali’i Drive, a sensação é de êxtase. Se o tempo foi bom? Se a colocação agradou? Nada disso importa mais.

Já é possível avistar os holofotes e ouvir o locutor Mike Reilly repetir incansavelmente o bordão que catapultou o evento para o mundo para cada um dos que passam a linha de chegada: “You are an Ironman!”

O Campeonato Mundial de Ironman é isso. Uma viagem inesquecível, um evento impecável e, principalmente, uma realização pessoal para levar para sempre.

Escrevendo esse texto acabo de decretar o fim do meu período de férias. Afinal de contas, preciso treinar para me classificar novamente para o ano que vem!

Rafael Gonçalves é bicampeão da Travessia dos Fortes, ex-recordista brasileiro dos 400m medley, completou 8 vezes a prova Ironman e tem os títulos de Melhor Natação do Mundial de Ironman do Havaí, em 2013 e em 2o14.