Faz exatos 18 anos, mas Nuno Gomes (um mergulhador de caverna profissional português naturalizado sul-africano) lembra como se fosse hoje quando autoridades locais da África do Sul o convidaram para ajudar a retirar o corpo do seu compatriota Deon Dreyer da água. Deon sucumbiu aos males da alta pressão e morreu durante uma expedição pela mítica Boesmansgat — obscura e perigosa caverna submersa, localizada no norte daquele país.
O resgate, porém, significava ir tão fundo a ponto de bater o recorde de profundidade nessa modalidade de mergulho, na época estipulado em 281,9 metros. Experiente, Nuno conhecia bem os riscos daquela decisão, que envolviam não apenas voltar sem o cadáver, mas simplesmente não retornar para contar a história.
Mesmo assim, no auge dos seus 40 e poucos anos, ele topou o desafio e desceu por incríveis 282,6 metros. Nuno não encontrou os restos mortais de Deon, mas sua marca é tão impressionante que, apesar de ter sido alcançada em 1996, até hoje é o recorde certificado pelo Guinness Book.
Daquele ano para cá, outros atletas profissionais até tentaram, mas ninguém jamais foi tão fundo quanto Nuno num mergulho em caverna. O brasileiro Gilberto Menezes, em 1998, mergulhou a 220 metros de profundidade na Lagoa Misteriosa — localizada a 270 quilômetros da capital do Mato Grosso do Sul.
O norte-americano Jim Bowden foi outro que por um triz não quebrou o recorde de Nuno. Em 1994, ele bateu na trave ao alcançar os 281,9 metros durante um mergulho em Zacatón, o famoso complexo de cavernas do México. Gilberto e Jim estão vivos, porém outros não tiveram a mesma sorte.
A primeira vez que alguém tentou chegar aos 300 metros de profundidade, por exemplo, foi em 1994 — ainda dois anos antes da marca de Nuno. Na época, o norte-americano Sheck Exley caiu na água em Zacatón (México) decidido a concluir a empreitada. Sheck (considerado uma lenda desse esporte, com mais de 4 mil mergulhos em cavernas) chegou aos 276 metros, mas percebeu que estava ficando sem gás nos seus cilindros e tentou voltar imediatamente. O grande problema foi que, por causa da pressão, que aos 276 metros de profundidade é 28 vezes maior que na superfície, ele perdeu a consciência.
O acidente abalou o universo do mergulho de caverna, e o próprio Nuno, que viu seu verdadeiro herói perder a vida. Mas não colocou fim no sonho dos mergulhadores de conquistar o maior desafio subaquático de todos os tempos: ultrapassar a barreira dos 300 metros.
Ainda alguns anos após o recorde batido, o australiano David Shaw mergulhou por 270 metros também decidido a resgatar o corpo de Deon. Porém, ele sofreu algumas complicações e morreu ao lado do sul-africano. Detalhe: Nuno, Sheck, David e Jim são alguns dos 11 nomes que integram a seletíssima lista de pessoas que ultrapassaram os 240 metros de profundidade em uma caverna.
RISCO IMINENTE
Há quem diga que o mergulho em caverna é o esporte mais perigoso do mundo, mais fatal até que o base jump, que desde 1981 até hoje matou quase 230 nomes, segundo dados divulgados pela revista especializada Blinc. “A chance de sobrevivência em mergulho muito profundo é de 50%. Isso significa que a metade dos que tentaram ultrapassar a barreira dos 300 metros não sobreviveu. Portanto, o recorde é só um bônus”, diz Nuno.
O perigo é tanto que, para realizar um mergulho em caverna, conhecido como cave diving, em inglês, é preciso um nível avançado de experiência no mergulho (em termos de orientação, iluminação e tabela de descompressão de gases). Além disso, é necessário possuir o certificado de cursos oficiais ministrados, por exemplo, pela Confederação Mundial de Atividades Subaquáticas (CMSA), da França. “O Brasil tem cursos de mergulho em caverna desde 1995. O principal requisito é querer mergulhar em ambientes assim e respeitar sua própria zona de conforto”, diz Tuta Barroco, mergulhador profIssional e supervisor de mapeamento de cavernas. Só assim o atleta está apto para finalmente se arriscar pelas cavernas desconhecidas mundo afora, porém, nada disso é garantia de sobrevivência.
Um dos grandes desafios do mergulho em caverna, além de sair dela vivo, é claro, é conseguir sair do labirinto subaquático sem se perder. Isso porque, mesmo com o uso das lanternas mais tecnológicas e da linha-guia (cabo que liga o mergulhador a um ponto fixo nas águas abertas), é necessário ter muita cautela para se orientar lá embaixo, sempre com pouquíssima ou nenhuma luminosidade. Em 1984, Pieter Verhulsel estava no fundo do Sterkfontein, uma caverna na África do Sul, quando se perdeu. Ele nadou por um tempo e encontrou um platô seco, mas nunca mais achou a saída e morreu de fome ali mesmo.
A pressão é outro inimigo do mergulhador, que a cada metro percorrido fica um pouco mais grogue. Só para se ter uma ideia, a partir dos 150 metros, o corpo passa a dar sinais alarmantes, como a “síndrome neurológica de alta pressão”, causada pelos efeitos tóxicos do nitrogênio e do hélio. Por essas e outras razões, ao alcançar os 300 metros de profundidade, distância que pode ser percorrida em 15 minutos, o mergulhador precisa de pelo menos 12 horas para concluir todas as etapas de descompressão e poder, enfim, sair da água com segurança. Senão, esses gases podem bloquear a passagem do sangue para o cérebro, causando grandes sequelas ou a morte do atleta em questão de (poucos) minutos. Durante um de seus mergulhos em Boesmansgat, na África, Nuno bateu os 253 metros, porém, retornou à superfície mais rápido do que deveria. Quando saiu, ele estava surdo dos dois ouvidos. “Precisei de um tratamento de semanas e medicamentos para escutar de novo. Foi difícil superar, porque eu passei a achar que ficaria surdo se eu mergulhasse de novo”, lembra ele, que costuma ser acompanhado por uma equipe de médicos durante suas empreitadas.
EXPERIÊNCIAS INSPIRADORAS
Apesar dos perigos que cercam a modalidade, mergulhadores de caverna vivem experiências incríveis no fundo da água, colaborando com descobertas relevantes nos campos da geologia e biologia.
“Uma das minhas experiências mais legais foi ficar cara a cara com um peixe raríssimo chamado ‘coelacanth’, durante uma queda na Baía de Sodwana, na África do Sul”, lembra Nuno. Para muitos cientistas, essa espécie, com mais de 255 milhões de anos, estava completamente extinta do planeta Terra.
“Para fazer um mergulho como esse, é preciso ter personalidade e saber que algum dia isso pode ter consequências fatais”, diz Nuno. O futuro do mergulho de caverna é incerto, especialistas e atletas não sabem dizer se uma pessoa realmente é, ou não, capaz de ultrapassar os 300 metros de profundidade — onde os raios solares não chegam e as temperaturas batem fácil os 7 graus Celsius.
Os bravos atletas continuam lutando para sair com vida desse ambiente extremamente obscuro, enquanto desfrutam da chance de ver com os próprios olhos paisagens tão lindamente lunares, que poucas pessoas no mundo sonharam realmente existir.