*Por Marta Mitsui Izo, professora de natação da BT Eldorado (SP)

Especializada em águas abertas, Marta Mitsui Izo dá aula de natação na Bodytech Eldorado (SP) e conta como surgiu sua paixão por “maratonas aquáticas”: quando se tornou a 5ª mulher brasileira a atravessar o Canal da Mancha, que separa a Inglaterra da França, na Europa.

Ela tinha 36 anos e nadou 43km –o canal tem 34km, mas a distância pode aumentar por causa das correntezas– em 12h13 de aventura. Segundo ela, apenas 10% das pessoas que tentam atravessar o canal conseguem.

Em 2011, aos 41, ela voltou ao Canal com três amigas para fazer revezamento (ida e volta), trocando a cada uma hora. Juntas, elas bateram dois recordes mundiais (o da ida e o da travessia completa).

A nadadora, que planeja nadar sozinha o Rio Hudson, em Nova York, em sete dias, em 2016, e ir do Rio de Janeiro a São Paulo revezando com outros sete atletas, relembra a realização do seu sonho.

“Era dezembro de 2003, estava querendo algo diferente em minha vida, alguma conquista, sei lá, qualquer coisa. Foi então que me perguntaram se tinha algum sonho, e eu disse sim. Um que estava engavetado desde meus 15 anos: atravessar o Canal da Mancha. Todos acharam loucura e foi isso que me incentivou a realizá-lo: o grande desafio!

Marquei uma data – agosto de 2006 – e, em janeiro de 2004, iniciei os preparativos. Foi bem difícil voltar a nadar. Apesar de estar na borda da piscina todos os dias (sou professora de natação), não treinava havia mais de 17 anos! Por incrível que pareça, não consegui nadar 200m direto na primeira vez que caí na água. Fui me condicionando aos poucos até que passei a viver mais na água do que na terra. Brincavam até que logo logo estaria com escamas e guelras. Foram 2 anos e meio de preparação. Fiz treinos duríssimos, chegando a ter um volume semanal de 70km! O mais marcante foi o dia em que tive que treinar 12h! Comecei às 6h e só parei às 18h! Loucura, né? Terminar com a piscina lotada de espectadores me esperando completar foi super emocionante e sem palavras! Treinei também na madrugada, com neblina e água gelada várias vezes.

Durante aquele período, tive acompanhamento de vários profissionais: nutricionista (que me ensinou a suplementar direito) massagista (que relaxava a musculatura dos fortes e volumosos treinos) e acupunturista (que me livrou de uma tendinite no antebraço). Para o projeto, tive que abrir mão de muitas coisas, mas minha família e amigos não saíram do meu lado, me apoiando sempre. Isso fez uma diferença enorme.

Antes de contar como foi a travessia, uma pequena explicação sobre o Canal da Mancha:
– é um “braço” de mar que separa a Inglaterra da França
– é uma das principais rotas de navios cargueiros do mundo  
– o trajeto mais curto fica entre as cidades de Dover, na Inglaterra, e Calais, na França, que, em linha reta, soma 34km. Mas por causa das fortes correntes e ventos, essa distância aumenta para mais de 40km
– a água é gelada, em torno de 12ºC a 17ºC

Como funciona a travessia: existe uma associação, a Channel Swimming Association, e o atleta tem que entrar em contato, comprar o paconte de informações, preencher os questionários (anamnese pessoal), enviar o atestado médico, escolher a época que pretende atravessar e qual barqueiro irá acompanhar.

É preciso enviar tudo isso para a associação e esperar a aprovação. Além disso, é obrigatória a presença de um fiscal para homologar a travessia. É reservada uma janela, que pode ir de 5 a 8 dias, na qual a travessia será feita no melhor deles (apenas uma chance). A minha era de 8 dias. Foi uma longa espera, pois não liberam a travessia se o vento está forte –e não parava de ventar! Consegui nadar no penúltimo dia (imaginem a ansiedade). Mas fui presenteada com um excelente dia!

travessia

Eram 6h45 da manhã quando iniciei a travessia. Fiquei muito emocionada pois não acreditava que estava a caminho da realização de um sonho. Agradeci a Deus por estar lá e pedi que me protegesse até o final daquela longa jornada.

A água estava a 17ºC, um pouco geladinha, mas nada insuportável. Meu técnico, Igor de Souza, pediu para ser paciente pois ficaria horas e horas nadando.

Muitos perguntam o que pensei, se em algum momento quis desistir ou outras coisas mais. Não tive pensamentos negativos, pelo contrário, agradeci a todos que me apoiaram, cantei música, contei braçadas, pensei na técnica de nado, mas desistir não!

Nadei a primeira hora direto, depois fiz de 30min em 30min até completar a 4ª hora, de 20min em 20min até completar a 8ª hora e de 15min em 15min até o final. Nessas pausas, a alimentação/hidratação funcionou da seguinte maneira: água, carboidrato diluído, pêssego em calda, Coca-Cola e aspirina C.

Detalhe muito importante: para me hidratar e suplementar não era permitido me segurar em nada, tem que ser feito na sustentação e, se possível, bem rápido por causa das correntes. Quando o Igor me disse “esta é sua última hidratação” me emocionei, acelerei e pensei “Vou conseguir!” Faltavam 500m.

Nadei até não dar mais e fiquei de pé —foi um pouco difícil pois estava meio tonta pelo fato de ter que mudar da posição horizontal para a vertical, cansada, a água balançava muito e as pedras estavam lisas por causa das algas. Então, o barco deu o sinal de que a travessia havia sido completada.

Me abaixei e deixei os sentimentos tomarem conta de mim. Chorei muito, pois não acreditava que havia conseguido e que todo esforço havia sido recompensado. Era noite de lua cheia e demoramos umas quatro horas para voltarmos para a Inglaterra, mas não estava me importando, estava tão feliz que poderia estar chovendo que também não me importaria. Foram 12h13min de travessia e 43km nadados!

Fui a 5ª mulher brasileira a atravessar o Canal da Mancha. Apenas 10% das pessoas que tentam conseguem completar.

A modalidade “águas abertas” ou “maratonas aquáticas” se tornou minha paixão, um hobby para o resto de minha vida. Nadar livremente, sem bordas ou raias ao lado. Sem a faixa no fundo da piscina. Apenas um ponto de saída e um de chegada. Vencer a adrenalina de nadar em diferentes lugares. Nadar em águas abertas significa resgatar a “pureza” do esporte, a verdadeira essência da natação, um desafio do homem contra a natureza.

Agora, algumas dicas para quem quiser se aventurar nas maratonas aquáticas (não precisa ser o Canal):

– procure um profissional da área

– respeite seus limites

– respeite o mar, represa, rio ou lago

– tenha calma

– comece com pequenas distâncias

– converse com seu professor/técnico antes para saber se está em apto para a distância escolhida

Experimentem, difícil não gostar!”

*Marta Mitsui Izo dá aula de natação na Bodytech Eldorado (SP). Ela foi a 5ª mulher brasileira a atravessar o Canal da Mancha, que separa a Inglaterra da França, na Europa. Anos depois, voltou para fazer a travessia do Canal da Mancha em uma equipe com quatro atletas e bateu dois recordes mundiais: recorde do trecho Inglaterra-França em revezamento e recorde da travessia inteira – o anterior era de 19h04 e a equipe em que Marta estava fez em 18h42. Elas também formaram o primeiro quarteto do mundo a completar o Canal da Mancha ida e volta.